O estoque de 4,4 milhões de armas nas mãos de civis e CACs (caçadores, atiradores desportivos e colecionadores) até 2021 ultrapassa a quantidade de armamentos utilizados nos órgãos públicos, segundo a 16ª edição do Anuário de Segurança Pública, realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Desde 2017, apontam os pesquisadores do Fórum, Isabela Figueiredo, Ivan Marques e David Marques, houve uma defasagem "quase irrecuperável" na capacidade de monitoramento e controle na política sobre armamentos. Em 2019, esse gargalo se acentuou.
O aumento de armas em circulação expõe a população a perigos, uma vez, além da maior facilidade para disparos acidentais, há mais chances de esses objetos serem desviados para o crime.
Em entrevista ao R7, a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, explica como a uma maior quantidade de armamento em poder de civis pode resultar em um possível aumento desses objetos no mercado ilegal. "Quando um suspeito sabe de alguém que tem uma arma, essa pessoa se torna alvo de um crime. Se um suspeito quer obter de uma arma e não pode, é com a pessoa que tem o porte legal que ele consegue", diz.
Em outros casos, pode ocorrer de criminosos roubarem empresas de segurança, que utilizam armas de fogo. Há cerca de duas semanas, por exemplo, um grupo abordou um caminhoneiro e roubou 30 revólveres e pistolas que eram transportados para uma companhia, na região de Jundiaí, no interior de São Paulo.
Casos assim, analisa Pollachi, vêm acontecendo com frequência. "É falta de políticas públicas de segurança desde a facilitação para o porte até mesmo em um simples transporte de carga de arma", diz.
Segundo o Anuário, a cada três armas registradas no Brasil, uma está irregular. Sendo 4,4 milhões em estoques particulares, 1.542.168 têm registros expirados no Sinarm (Sistema Nacional de Armas).
Além disso, o número de registros ativos de CACs cresceu 473,6% entre 2018 e 2022. “Hoje quem tem porte ou registro para CACs consegue adquirir 30 tipos de arma, inclusive as mais potentes", diz a gerente do Sou da Paz. Os pesquisadores do Fórum Brasileiro de Segurança Pública ressaltam que a facilidade na obtenção de armas de alto poder destrutivo, como fuzis, acelera a obtenção regular de armas e munições que acabam imediatamente desviadas ao crime.
A psicóloga forense Cassia Aparecida Rodrigues e doutora em psicologia com ênfase em avaliação psicológica explica que o perfil das pessoas que têm armamentos desviados inclui médicos que trabalham em áreas de riscos durante a madrugada, advogados, principalmente os criminais, políticos, empresários e comerciantes de diferentes ramos.
Há uma sensação de poder, segundo a psicóloga, que recai sobre algumas pessoas que adquirem armas. "Dependendo do indivíduo, caso ele não tenha uma compreensão adequada dos riscos inerentes ao armamento e todas as responsabilidades envolvidas, ele pode ser tomado pelo 'mito do herói'", diz ela se referir às pessoas que utilizam armas de fogo para intervir em ações cuja responsabilidade é da polícia.
Armas dentro de casa também impõem riscos às pessoas que moram nesses locais, principalmente se estiverem com acesso facilitado. No mês passado, uma criança de quatro anos levou a arma do pai para a escola e colocou em cima da mesa para mostrar a um colega. A professora flagrou a ação antes que um acidente pudesse acontecer, e chamou a polícia.
Segundo a psicóloga, a pessoa que porta armas precisa, também, ter a responsabilidade de saber que há indivíduos que podem ser mais vulneráveis emocionalmente na casa. “Ao notar qualquer sinal deste tipo, a arma deve ser retirada do ambiente familiar, assim como demais objetivos e substâncias de risco”, afirma.
Em parceria com a Sesp (Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social), do governo do Espírito Santo, o Instituto Sou da Paz criou um modelo para o controle de armas de fogo no estado, que começou em 2019, segundo a gerente de projetos, Natália Pollachi. A proposta se baseia em quatro eixos: produção de dados, inteligência policial, cooperação e custódia de armas.
No estado, a apreensão de armas contribuiu para o alcance das metas. De acordo com o estudo "Modelo integrado de armas de fogo no Espírito Santo", foi realizado um diagnóstico que possibilitou uma análise sobre os registros e armas apreendidas, assim como as mantidas sob custódia e, por meio desta investigação, houve a identificação da origem dos armamentos.
Com as informações das perícias de balística, das armas custodiadas e munições apreendidas, foi feito o envio desses objetos para a destruição.
O instituto detectou, com o projeto, que há pouco conhecimento sobre armas e meios de rastreamento, ausência de um sistema de registros de apreensão que sejam padronizados e a falta de recursos para as perícias.
As ideias de que o mercado ilegal seria alimentado primordialmente pelo tráfico internacional e que a grande maioria das armas não teria numeração de série são percepções “sem lastro”, segundo o Sou da Paz. Isso impede as autoridades de “atuar de forma sistêmica e integrada no controle de armas”.
Com os resultados positivos da experiência no Espírito Santo, o instituto espera que o modelo possa incentivar outros estados a investir no controle da circulação de armas com a atividade estratégica da segurança pública.
Fonte>R7