O julgamento dos réus acusados de homicídio no caso do incêndio da boate Kiss, marcado para ter início nesta quarta-feira (1º), é considerado o maior tribunal do júri da história do Rio Grande do Sul e um dos mais importantes do país. “No Brasil, tivemos poucos casos dessa magnitude, com essa gravidade e impacto social”, diz o desembargador Antônio Vinícius Amaro da Silveira, presidente do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Algumas características tornam o júri um momento marcado por complexidade e tensões: as dimensões do julgamento, que envolve quatro réus, 242 vítimas e mais de 600 feridos na tragédia, o número de familiares que poderão assistir ao julgamento e os aspectos técnicos do processo. Sem esquecer que o júri ocorrerá num contexto em que o país ainda vive a pandemia do coronavírus com a vigência de medidas e protocolos sanitários.
Um dos pontos polêmicos do julgamento é o próprio fato de o crime ir a júri popular. Daniel Kessler, advogado e professor de direito penal da Universidade Feevale, explica que, segundo a legislação brasileira, somente crimes dolosos contra a vida são submetidos a esse tipo de julgamento. As demais sentenças são decididas por juízes em processos criminais. “Esse caso é muito discutido porque o dolo em si impõe uma complexidade”, diz. “O dolo é a vontade levada a um fim, já a culpa é a vontade mal dirigida, alguém que não quer atingir algo, mas atinge. O dolo é entendido como a aceitação de um resultado como possível.”
Inicialmente, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu que o caso não deveria passar por um tribunal do júri, mas, depois, o Ministério Público e a AVTSM (Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria) entraram com um recurso especial apresentando indícios que apontariam para um crime de homicídio doloso. Com isso, o Tribunal de Justiça decidiu que haveria o julgamento.
O desembargador Silveira, que coordena a organização do julgamento, afirma que há mais de 200 profissionais do Tribunal de Justiça envolvidos no planejamento do processo, entre diretores, equipes de segurança e engenheiros que trabalham na preparação das salas que receberão o público.
De acordo com a AVTSM, cerca de 150 familiares deverão comparecer ao júri com o apoio da entidade. Para isso, o TJ-RS reservou um total de 302 vagas, 86 delas no plenário. Além disso, haverá mais quatro salas de apoio, três para vítimas e familiares e uma para parentes dos réus. “Esse é um caso muito mais difícil do que qualquer legislador previu quando estabeleceu o tribunal do júri na década de 1940”, afirma Orlando Faccini Neto, que presidirá o julgamento.
A legislação brasileira determina que todos os tribunais do júri se iniciem com o depoimento das vítimas, depois o das testemunhas da acusação e da defesa e, por fim, o interrogatório dos acusados. “Os réus só falam depois de escutarem tudo o que se diz sobre o caso”, explica Kessler. “O procedimento determina que a acusação produza a prova para depois a defesa argumentar.”
O primeiro dia do júri será marcado pelos depoimentos de dez vítimas. “É um momento difícil, vai haver muita angústia. Há uma expectativa no ar, as pessoas estão ansiosas pelo julgamento”, diz o desembargador. “Acredito que juntamente com o depoimento dos réus, as falas das vítimas serão um dos momentos de maior tensão.” Silveira esclarece ainda que não há estimativa de tempo nessa fase. Isso porque os depoimentos podem se estender por minutos ou horas, a depender dos detalhes apresentados pelas testemunhas.
Após isso, a fase de instrução dá lugar às testemunhas dos réus. No julgamento, serão 19. Essas pessoas, segundo especialistas, não precisam necessariamente ter estado no dia da tragédia. Podem ser amigos, familiares, funcionários ou conhecidos dos réus que tenham participado da vida deles e aceitado dar depoimento sobre eles.
“O júri é um julgamento realizado por pessoas comuns, então diversos pontos contam para a decisão dos jurados, não somente aspectos técnicos”, disse o professor de direito penal. “O Ministério Público poderá explorar muito a dor das famílias, enquanto a defesa dos réus poderá buscar a sensibilização dos jurados por meio da dor dos réus, mostrando que são seres humanos sendo julgados.”
Em relação ao interrogatório dos réus, Kessler explica que há dois tipos distintos de defesa, a pessoal e a técnica. “A primeira é quando o réu fala e a segunda é quando permanece em silêncio. Nessa possibilidade, o silêncio não pode ser usado contra ele. Mas, na prática, é difícil convencer o jurado de que não dizer nada não vá pesar contra o réu”, afirma o professor.
Finalizada a fase de instrução, inicia-se a dos debates. De acordo com uma determinação do STJ (Superior Tribunal de Justiça), serão duas horas e meia para o Ministério Público e para a assistência de acusação, duas horas e meia para as defesas dos réus, duas horas de réplica e mais duas horas de tréplica. “É o momento de convencer os jurados das teses de cada uma das partes e contrapor os argumentos da parte oposta”, diz o desembargador.
Com o fim dos debates, os jurados serão questionados se estão prontos para decidir a sentença. Nesse momento, dirigem-se a uma sala privada para responder a um questionário.
Uma das determinações da legislação do tribunal do júri é que os jurados não se comuniquem entre si. “Eles votam de forma individual, sem terem conversado”, ressalta Kessler. “Dadas as dimensões do julgamento e a quantidade de dias que ele poderá se estender, se algo acontecer a um jurado, serão selecionados suplentes no mesmo dia. ”Para o julgamento, foram sorteados 150 jurados. Desses, sorteados 25 para que, por fim, se chegasse aos sete que compõem o corpo de jurados do plenário.
A mudança do local do julgamento, de Santa Maria para Porto Alegre, foi um dos pontos questionados pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria. “Trata-se de um fato cujo impacto na vida das pessoas foi muito grande. Em Santa Maria, os jurados, possivelmente, estariam comovidos e tocados pela tragédia e isso retiraria a capacidade de serem imparciais”, explica Kessler. O professor ressalta, no entanto, que falar em decisão justa nesse tipo de processo, com sete jurados, não é algo simples. “É um caso com diversas questões técnicas e com um alcance internacional. Um marco histórico.”
Fonte:R7